sábado, 9 de outubro de 2010

DANÇA OU FLAUTA: que preconceitos há por trás de uma tradução?

Uma das questões mais debatidas na questão da utilização da dança na liturgia das igrejas evangélicas é o que realmente diz os salmos 149.3 e 150.4, já que em muitas versões aparece palavra ‘flauta’ em vez de ‘dança’. Os que defendem a dança litúrgica se embasam nesses versículos para legitimar sua prática e os que refutam a dança litúrgica sempre levantam a dúvida (e muitas vezes sua certeza) de que a o termo em questão se refere a flauta.
Parte de flauta pré-histórica encontrada na Eslovênia
As Traduções
Nas versões da tradução de João Ferreira de Almeida (1628-1691), a mais querida e popular no meio evangélico, encontramos o seguinte: A versão Revista e Corrigida, edições de 1969 e 1995, traz a palavra ‘flauta’ no salmo 149.3; e no salmo 150.4, a de 1969 traz ‘dança’ e de 1995, ‘flauta’. Mas isso não se dá com outras versões em português. A antiga Tradução Brasileira (1917) e a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (2000) trazem ‘dança’ em ambos os versículos bem como versões de editoras católicas em português como famosa Bíblia de Jerusalém (1985) e a Tradução Ecumênica da Bíblia (1994). Em outros idiomas encontramos o equivalente a ‘dança’ em vez de ‘flauta’: Por exemplo, na King James Version (edição de 1769) temos a palavra inglesa dance(dança) e em francês encontramos danse (dança) na versão de Louis Segond (1910) para ambos os versículos.
Ilustração de João Ferreira de Almeida e
logomarca da Sociedade Bíblica do Brasil
O Texto Original
Mas o que diz o texto original em hebraico? No texto original temos a palavra machol que significa 'dança' e é originária de uma palavra que indica ‘girar’, 'movimentar-se em círculo’. Será que a palavra não se referiria ao uso de um tipo de flauta que se deveria tocar dando voltas ou girando o instrumento como alguns argumentam? Não. Ela se refere mesmo a dança. Vejamos:

  •            a) A palavra hebraica padrão para flauta é ugav. Há também a palavra chaliyl que indica flauta ou pífaro (Isaías 30.29). Não há referência que indique machol como flauta;
  •           b) A dança judaica era e é caracterizada pelo movimento circular e por grupos de pessoas que dançam em círculo; até no hebraico moderno machol significa 'dança';
  •            c) A mais antiga tradução da Bíblia hebraica, a Septuaginta, traduz em ambos os versículos machol por chorós, isto é, ‘dança’ no que foi seguida pelas versões posteriores como a Vulgata Latina.
Se no texto original e na maioria das traduções antigas e modernas prevalece a palavra ‘dança’ por que se encontra ‘flauta’ em outras versões?
Judeus ortodoxos dançando
Preconceito?
Entendo, com pesar, que o motivo da troca de ‘dança’ por flauta’ em algumas versões da Bíblia em detrimento do texto original é o preconceito contra a dança na liturgia cristã. Por que tendo as evidências do texto original, do contexto histórico e cultural a palavra foi traduzida de modo diferente? Infelizmente, isso não é novidade na história do texto da Bíblia. A perícope da Mulher Adúltera (João 7.53 – 8.11), embora reconhecidamente inspirada por Deus, não fez parte por um bom tempo do cânon da Bíblia. Os manuscritos mais antigos do evangelho de João disponíveis não a trazem bem como os mais antigos códices bíblicos. Além disso, alguns manuscritos trazem a perícope no evangelho de Lucas (cujo estilo é mais similar a perícope do que o de João) ou no fim do evangelho de João. Praticamente só a partir do início da Idade Média é que os manuscritos começaram a reproduzir a história da Mulher Adúltera no evangelho de João e assim permaneceu. Os estudiosos da crítica textual do Novo Testamento concluem que o texto é uma peça antiga e autêntica da vida de Jesus, mas que não foi escrita por João e demorou-se a fixar-se no cânon bíblico. 
Não está em questão sua historicidade ou inspiração divina, a qual o texto emana. Há testemunhos dos primeiros cristãos (Pápias no século II e a Didascália dos Apóstolos no século III) de que a história da Mulher Adúltera era bem conhecida dos cristãos e usada como exemplo da bondade do Senhor.
Mas por que houve tanta demora (ou resistência?) a que esse registro de um episódio tão significativo da vida de Cristo fizesse parte da Bíblia? O conceituado biblista Joachim Gnilka nos dá uma indicação valiosa:

Mas a resistência que podemos observar contra ela, e que tornou sua aceitção tão problemática, está relacionada com seu objetivo. Para muitos a história pareceu escandalosa. A bondade de Jesus para com uma pecadora foi sentida como uma coisa capaz de provocar escândalo. Dificilmente se poderá encontrar outra explicação para esta situação”[1].

Cristo e a Mulher Adúltera:
Ilustração de 1865 do célebre Gustave Doré

O teólogo Wilson Paroschi, especialista em Crítica Textual do Novo Testamento, afirma:

Com respeito à demora em ser aceita pelos cristãos em geral, essa poderia muito bem ser atribuída à rígida disciplina eclesiástica para com o adultério, uma vez que a narrativa revela que Cristo perdoou muito facilmente a mulher; somente quando a disciplina adotou métodos menos intolerantes, após o século IV, foi que a igreja teria estado disposta a aceitá-la” [2].

Creio que o que aconteceu a história da Mulher Adúltera foi o que aconteceu com a substituição de ‘dança’ por ‘flauta’. O medo do escândalo que pode causar a dança no culto. O gosto pessoal de tradutores e comentaristas interferiu na tradução. O não gostar de dança ou de não gostar de associá-la a Deus interferiu na tradução em detrimento do texto original e em detrimento do próprio gosto de Deus (não é ele o alvo da liturgia?) já que o Antigo Testamento mostra com clareza que Deus era adorado com danças.

Conclusão
O intuito desse texto é esclarecer quanto à questão do que diz o texto original dos salmos 149.3 e 150.4 bem como protestar contra a manipulação preconceituosa do texto bíblico. O texto original e a maioria das traduções (só citamos alguns exemplos acima) trazem ‘dança’ e não ‘flauta’. O objetivo não é tornar a dança litúrgica obrigatória para todas as denominações evangélicas, as quais têm liturgias próprias e diferentes orientadas por suas tradições históricas e líderes locais, mas contribuir para a aceitação da dança litúrgica nas várias formas de adoração ao Criador como expressas na Bíblia, tal qual testemunhadas na Bíblia.
O rei Davi dançando em adoração a Deus

NOTAS
[1] GNILKA, Joachim. Jesus de Nazaré: Mensagem e História. Editora Vozes: Petrópolis, 2000, p.107.
[2] PAROSCHI, Wilson. Crítica Textual do Novo Testamento. Edições Vida Nova: São Paulo, 1993, p.205.

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