domingo, 2 de novembro de 2008

SENTENÇA DE PILATOS - PARTE VII


Os erros históricos e bíblicos da Sentença de Pilatos

Além de toda problemática em torno da “descoberta” da sentença de Pilatos, o texto contém erros históricos e bíblicos que veremos a seguir. A versão base será a do Arquivo de Simancas havendo indicação quando se comentar a versão francesa.

1. O Idioma da Sentença

Todas as versões afirmam que o documento “original” estava em hebraico. O recurso a um “original” hebraico é comum nos livros apócrifos para emprestar antiguidade e autenticidade ao documento. Porém,sabe-se que os documentos oficiais romanos eram escritos em latim, não obstante o grego também fosse muito usado principalmente na parte oriental do Império. Nos dias de Jesus, os judeus falavam principalmente o aramaico; o hebraico era restrito à leitura bíblica, às orações; era uma língua litúrgica e erudita, como o latim o foi na Idade Média. Portanto a sentença de Pilatos jamais teria sido escrita em hebraico.


2. A Data da Sentença

O texto diz que a Sentença foi proferida em 25 de março do ano 17[1]de Tibério, ou seja, 29/30 d.C. Baseados nos informes dos Evangelhos, nos de outros escritos antigos e em dados astronômicos, os pesquisadores do Jesus histórico[2] apontam como datas possíveis para a morte de Jesus como sendo 7 de abril de 30 ou 3 de abril de 33. Portanto, se o ano coincide, o dia está errado.

3. O Estilo da Sentença

Como já assinalado por Isambert (ver parte VI deste estudo), o estilo da sentença destoa do que se sabe dos textos jurídicos romanos, especialmente em se levar em conta o cômputo do tempo dos judeus (ano da criação, volta do cativeiro) para assinalar a data da prolação da sentença. Para os romanos, especialmente Pilatos que não se preocupava com as sensibilidades judaicas, os judeus eram mais um povo dominado; as leis deles eram respeitadas, mas o que valia era a lei romana. Quem escreveu o texto da sentença fez o povo judeu ter uma parceria judicial com os romanos maior do que a que havia naqueles tempos.
A expressão “Império Romano” como um nome oficial do Estado romano é incomum, pois apesar de os romanos terem construído um império, a designação oficial mais comum era SPQR (Senatus populusque romanus, o Senado e o Povo romano).
Fato que chama muito a atenção na versão francesa são as expressões "Santa Cidade de Jerusalém" e "sumo sacerdotes e sacrificadores do povo de Deus". Roma não conferiu status sagrado a Jerusalém e ao povo judeu; e muito menos Pilatos, que era antipático à cultura e religião judaicas, ia conferir tais títulos aos judeus e a sua capital.

Evidentemente tais expressões são fruto de quem considera Jerusalém uma cidade santa e os judeus, o povo de Deus.
Na versão italiana, deve-se notar que a menção de Jesus como "Jesus Cristo" também não tem cunho histórico já que essa designação é posterior a sua ressurreição. O texto também diz que o povo chamava Jesus de "Cristo Nazareno", mas o título mais comum do povo para Jesus era o de profeta (Marcos 8.27-28).


4. As Autoridades romanas

O texto lança diante do leitor vários nomes e cargos a torto e a direito; evidentemente, para dar uma aura de documento oficial; porém, tal recurso é um das falhas mais gritantes do documento.
O texto apresenta cônsules do Povo Romano Lúcio Pisano e Maurício Pisarico; porém, no período indicado na sentença (17º ano do governo de Tibério, 29/30 d.C.) foram côsules romanos: C. Fufius Geminus, L. Rubellius Geminus, A. Plautius, L. Nonius Asprenas, M. Vinicius, L. Cassius Longinus, L. Naevius Surdinus e C. Cassius Longinus.
No texto aparece também um tal de Valério Palestino como proconsul; porém, não havia tal cargo na Judéia e muito menos se sabe quem é esse tal Valério Palestino.
Mas o erro mais crasso da Sentença é designar Pôncio Pilatos como regente da baixa Galiléia; ora, quem governava a Galiléia era Herodes Antipas; Pilatos era praeffectus ou governador da Judéia, Samaria e Ituréia.


5. As Autoridades Judaicas

A lista de nomes das autoridades judaicas ( à exceção de Anás e Caifás) que aparecem nas versões espanhola e francesa da Sentença não são conhecidos nas referências aos notáveis do povo judeu do período nas obras de Flávio Josefo, no Talmude e no Novo Testamento. Alguns nomes são comuns (Daniel, por exemplo). Era comum designar esses notáveis pelo nome do pai ou da localidade de origem, o que não acontece no texto. O nome Capeto (Capet no texto francês) é um nome reconhecidamente francês, não tendo nada a ver com um personagem judeu do século I.


6. Os Erros Bíblicos.


Na Sentença, Pilatos é que ordena que Jesus seja vestido de púrpura e coroado de espinhos; na Bíblia, isto é de iniciativa dos soldados (Mateus 27.27-31; Marcos 15.16-20; João 19.1-3), embora Pilatos tenha mandado açoitá-lo com o flagellum.
Na Sentença, os líderes judeus concordam com Pilatos que no titulus da cruz deve ser escrito que Jesus é o rei dos judeus; na Bíblia, eles não queriam que tal título fosse escrito na placa (João 19.20-22).
De um modo geral, deve se frisar que o teor geral da Sentença concorda com os Evangelhos já que responsabiliza em conjunto a Pilatos e a liderança judaica pela morte de Jesus.

7. O Calvário e a Porta de Struene

Na Sentença, o Calvário aparece com um monte público de suplício ou justiça; porém, não havia um lugar específico para aplicação da penas; deveria ser somente fora dos muros Jerusalém. Nunca existiu tal porta de Struene ou Estruene em Jerusalém.
Apesar de todas estas incoerências, o texto da Sentença de Pilatos, ou melhor suas várias versões, circulam na internet com ares de documento histórico.


NOTAS

*Na imagem acima, foto aérea da cidade de Cesaréia, antiga capital romana da Judéia ( hoje Isarel), onde residiam os governadores romanos. Estes iam à Jerusalém apenas em ocasiões especiais. No sítio arqueológico dessa cidade foi achada uma placa com o nome de Pilatos.

[1]Isto é, como está no texto do Arquivo de Simancas. Na internet aparecem também 18 e 19.

[2]THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus Histórico: um manual. São Paulo:Loyola, 2002, pp. 177-181; CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997, p.65.

REFERÊNCIAS

Bíblia de Jerusalém. VVAA.São Paulo: 1985, Paulinas

CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.

JEREMIAS, Joachim. Jerusalém nos tempos de Jesus. São Paulo: Paulus, 1983.

LISBOA, Walter Eduardo. A Paixão de Cristo segundo Mel Gibson: uma história bem contada? São Paulo: Paulinas, 2005.

LISTA DOS CÔNSULES ROMANOS. Disponível em:http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_Roman_Consuls

THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus Histórico: um manual. São Paulo:Loyola, 2002.

DANIEL-ROPS, Henri. A vida diária nos tempos de Jesus. são Paulo: Vida Nova, 1986.